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AINDA ESTOU AQUI - Os Horrores da Ditadura Militar e o Desaparecimento de Presos Políticos

Foto do escritor: Solange Bertolotto SchneiderSolange Bertolotto Schneider

Ainda Estou Aqui (2024, direção de Walter Salles)

Atenção: Essa não é uma análise do filme, e sim minhas memórias e reflexões pessoais sobre a ditadura que vivi, reativadas pelas imagens desse filme.

A ÚNICA OPÇÃO É RESISTIR, É LEMBRAR DE TUDO E DE TODAS AS VÍTIMAS



SINOPSE


Esse filme é a adaptação da autobiografia homônima de Marcelo Rubens Paiva se concentra no Rio de Janeiro, em janeiro de 1971, para onde o ex-deputado federal Rubens Paiva (Selton Mello) voltou a residir no Brasil alguns meses antes com sua esposa, Eunice Paiva (Fernanda Torres - de 1971 a 1996 / Fernanda Montenegro - em 2014), e seus cinco filhos depois do seu autoexílio em 1964 devido à cassação de seu mandato pelo Ato Institucional Nº 1.


Através desse ato, ficaram suspensos por dez anos os direitos políticos de todos os cidadãos vistos como opositores ao regime militar ditatorial, dentre eles congressistas, militares e governadores. Neste período, surgia a ameaça de cassações, prisões, enquadramento como subversivos e eventual expulsão do país.

Lei de Segurança Nacional, que seria publicada em 3 de Março de 1967, teve seu embrião no AI-1.


Determinou-se uma eleição indireta para os cargos de presidente e vice-presidente da República, com os vencedores devendo exercê-los até 31 de janeiro de 1966 e serem sucedidos por pleiteados em eleição direta, já prevista, em 1965.


Rubens Paiva, apesar de ter voltado a exercer a engenharia e a cuidar de seus negócios sem deixar de lado seus momentos ao lado de sua família e seus amigos, por continuar prestando suporte aos exilados sem comentar praticamente nada de suas atividades políticas com sua esposa e seus filhos, teve sua casa invadida, ocupada e revistada por seis homens (que, na verdade dos fatos, declararam pertencer à Força Aérea Brasileira), sendo, logo em seguida, dela levado preso para nunca mais voltar.


Um dia depois, ao passar a ter a vida pessoal sua e de seus filhos devassada por membros das Forças Armadas, Eunice é levada presa com uma de suas quatro filhas com Rubens, Eliana (Luiza Kosovski - em 1971 / Marjorie Estiano - em 2014), e sua vida é modificada para sempre.


Na prisão, Eunice é separada de sua filha, menor de idade, e ouve vários episódios de tortura que aconteciam atras das portas. É submetida a interrogatórios por vários dias, presa em uma solitária, sem nenhuma condição de higiene e conforto, assim como nenhuma acusação.

 


A DITADURA MILITAR NO BRASIL[1]


O filme Ainda Estou Aqui exibe os horrores da ditadura militar e o desaparecimento de presos políticos. Retrata a vida real de uma família brasileira, e, portanto, receberá um tratamento especial, pois o sujeito da análise não são os membros da família de Eunice e de Rubens Paiva, e sim a usurpação dos direitos democráticos na época mais sórdida da nossa história política, uma mancha vergonhosa em nossa democracia, que anda nos rondando novamente, de maneira sorrateira e hedionda.


O que aconteceu com a família de Rubens Paiva aconteceu com inúmeras famílias, que tiveram suas casas invadidas, reviradas, e com alguns de seus membros levados a prestar depoimento, sem nenhum mandado de busca, sem nenhuma informação de para onde essas pessoas eram levadas. Advogados não podiam entrar com Habeas Corpus, pois simplesmente não se sabia o paradeiro das vítimas da ditadura militar.

Alguns eram devolvidos para suas famílias, aliviados por terem sobrevivido, mas marcados para sempre pelos horrores, muitas vezes, apenas ouvidos, discretamente visualizados, mas suficientes para se saber dos horrores que se praticavam.


Eliana, a filha de Rubens e Eunice, ainda menor de 18 anos, passou um dia e uma noite sujeita a interrogatórios, ouvindo os sinais de tortura das salas ao lado.


Os relatos de tortura cruéis, em busca de confissões de crimes contra o regime militar (regime estabelecido ilícitamente, através de um Golpe de Estado) já se configura como a primeira incoerência, pois o regime militar foi uma ditadura que desafiou todas as leis vigentes no Estado Democrático de Direito, colocando toda a população sob a ótica de uma paranoia sem precedentes em nosso país.

 

A TORTURA


“A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de fortes, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça.” Eunice Paiva


Cresci durante a ditadura militar, e a única coisa boa que sobrou daquela época foi a exuberância da música popular brasileira, que para burlar a censura e os censores, utilizava uma linguagem poética e simbólica de uma qualidade sem igual.

O raciocínio tacanho, limitado e concreto dos usurpadores do poder da época, os militares, não alcançava a genialidade de um Chico Buarque ou de um Caetano Veloso, entre tantos outros.


Qualquer atitude considerada suspeita por eles, era passível de que o sujeito da suspeita tivesse sua casa invadida e algum ou alguns de seus membros levados para esclarecimento, sempre para um destino duvidoso, pois não se dizia para qual delegacia, e, na maioria das vezes, as pessoas em São Paulo eram levadas ao DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais), onde eram torturadas psicologicamente, fisicamente, sofrendo ameaças de todo tipo, inclusive às suas famílias.

O pau de arara era um dos métodos de tortura populares daquela época.

Outro departamento cujo nome causava pânico era o SNI (Serviço Nacional de Inteligência), que na verdade promovia uma verdadeira caça às bruxas, no caso as bruxas eram os cidadãos que lutavam por seus direitos, e, portanto, considerados comunistas.


O SNI podia incriminar qualquer cidadão, criando dossiês, inventando ou deturpando qualquer informação sobre qualquer cidadão, atribuindo uma narrativa que justificasse os absurdos cometidos por seus representantes.

 


“Não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos. Nosso inimigo não iria nos derrubar. Família Rubens Paiva não chora na frente das câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima e não é revanchista. Trocou o comando, continua em pé e na luta. A família Rubens Paiva não é vítima da ditadura, o país que é.” Eunice Paiva


Tudo isso era regado com os clichês de O Petróleo é Nosso, ou de que a Transamazônica seria a solução definitiva para o país! Parece que as únicas manchetes possíveis em revistas e jornais da época, pois todo o resto era censurado.

tudo girava em torno de uma propaganda da ditadura como a solução para os problemas de um comunismo que nunca existiu.


Um fato interessante com o qual me deparei, na época em que a empresa onde eu trabalhava tinha como gestores coronéis aposentados, entre eles um orgulhoso torturador do SNI, aposentado!!!! que resolveu implantar seus métodos paranoicos de investigação, bem como seus métodos habituais de interrogatório, no Departamento de Recursos Humanos. Tais cidadãos tinham uma tara especial pela área de Recursos Humanos, pois acreditavam que as informações sigilosas sobre os funcionários poderiam desmascarar complôs comunistas, que, em suas fantasias, colocavam a empresa e o país em risco.


Vale ressaltar que tais indivíduos ansiavam por uma validação, não bastava tocarem o terror, queriam que todos lhes dessem razão. Todos eram suspeitos, principalmente os funcionários que estudavam na USP, pois, segundo eles, a USP era um reduto criadouro de comunistas. Estudantes de História e de Filosofia eram os mais visados, pois eram comunistas irreversíveis!


Já eu, estudante de Psicologia na época, ouvi uma maravilhosa digressão sobre o porquê o governo militar incentivava a expansão dos cursos de Psicologia pelo país, afinal, estariam formando boas esposas e mães, e caso houvesse um excedente, poderíamos ser aproveitadas em casas de massagem, vulgo prostibulo, afinal, psicólogas e putas deviam ser compreensivas e carinhosas com a clientela perversa do prostibulo.


Recordo claramente uma situação em que um dos Diretores, da mesma corja dos ditadores e torturadores aposentados, exigiu a contratação de um auxiliar de limpeza. A avaliação psicológica dos candidatos consistia numa infinita bateria de testes e entrevistas, e a desse rapaz especificamente foi uma das mais graves que pude observar, seu perfil psicológico dizia que era um criador de caso, com traços de psicopatia.


O RH indeferiu a contratação, fui chamada à diretoria onde fui coagida a recomendar a contratação do rapaz, com a alegação de que seria um simples faxineiro. Tive que ressaltar que um simples faxineiro teria acesso a todas as instalações do prédio, abarrotado de informações confidenciais. Me recusei a assinar o laudo a favor da contratação, porém orientando que ele próprio poderia fazê-lo, desde que assumisse a responsabilidade pela permanecia do funcionário dentro da empresa.


Resumindo a história, o rapaz foi demitido no horário do almoço do primeiro dia de trabalho, por estar alcoolizado e molestando uma jovem de 17 anos na escadaria do prédio. Mas a jovem também foi demitida, estudante do primeiro ano de história da USP, arrimo de família, com pai invalido, irmão pequeno, único salário da família, que trabalhava em dois turnos de 6 horas para sustentar a família, estudava à noite.

Aquele que era o ex-toturador do SNI, ressaltando que ex-torturador não existe, veio até o RH dizendo que o incidente havia servido para provar que ele estava certo ao implicar com a moça. Fazendo de tudo para nos convencer de que seus métodos eram impecáveis e eticamente louváveis.


Apenas ouvi tudo o que ele disse, sem interrupção, quando ele havia cansado de justificar seus métodos eu lhe disse que a garota era menor de idade, o pai invalido por acidente de trabalho etc., e que agora a família dela estaria em situação delicada, pois ao ser demitida por justa causa, seria difícil para ela conseguir outro emprego. Nesse momento, aquele idoso na minha frente deixou cair uma lagrima. Não creio que tenha sido por remorso ou empatia pela garota, mas sim porque sua narrativa sádica e paranoica não encontrou o respaldo numa representante dos Recursos Humanos.   


Quando se observa os mesmos métodos de persuasão, tortura psicológica e opressão utilizados pela ditadura, transpostos para dentro de uma empresa e seus funcionários, na grande maioria, composta de jovens, sabe-se muito bem com que tipo de mal absoluto estamos lidando.


Ditadura, NUNCA MAIS!

 

Pau de arara: A violência militar no Brasil

Bernardo Kucinski e Ítalo Tronca | 2013

248 Páginas

Editora: Fundação Perseu Abramo

ISBN: 978-85-7643-153-4

 

 

 

 

 

 



[1] Recomendo a leitura de Pau de arara: A violência militar no Brasil

Bernardo Kucinski e Ítalo Tronca pdf disponível no link https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/pau-de-arara-a-violencia-militar-no-brasil/

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