ADOLESCÊNCIA - ANALISE SIMBÓLICA SIMBOLICA JUNGUIANA DA SERIE DA NETFLIX
- Solange Bertolotto Schneider
- 11 de abr.
- 11 min de leitura
Atualizado: 15 de abr.
ADOLESCÊNCIA - Análise Simbólica Junguiana da Série Netflix -
Atenção, contém spoilers!!!
Adolescência é uma série em 4 episódios da Netflix[1] que, acima de tudo, é um alerta a todas as famílias sobre a influência da internet e dos discursos de ódio propagados principalmente pela “manosfera”[2], trazendo à tona termos como incels, red pills”, além de alertar sobre o significado de vários emojis utilizados nessa comunicação que inclui bullying, discursos de ódio, misoginia e apologia ao estupro.
A trama conta a história de um adolescente de 13 anos, Jamie (Owen Cooper), acusado de assassinar uma colega de escola, Katie Leonard ( Emilia Holliday).
O choque de realidade se inicia ao testemunharmos a prisão de Jamie, cuja casa é arrombada pela polícia nas primeiras horas da manhã seguinte ao crime, sendo retirado da cama, enquanto a casa é revirada em busca da arma do crime. A família em choque, sem acreditar no que está acontecendo, afinal, Jamie é só um garoto de aparência inofensiva, que faz xixi nas calças ao ser surpreendido pela prisão. Difícil imaginar estar no lugar de qualquer membro daquela família, cujo membro mais jovem é acusado de um crime hediondo.
Durante todo o primeiro episódio, Jamie repete o tempo todo que não fez nada de errado, ao invés de sou inocente, que considero ser a primeira pista de que ele acreditava estar agindo de maneira correta, pois esse é um comportamento comum nos crimes de feminicídio.
Durante muito tempo os crimes de feminicídio eram justificados como crimes em legitima defesa da honra e que as mulheres são responsáveis por fazerem os homens perderem a cabeça. Ainda hoje vemos crimes de estupro e feminicídio saírem impunes e a vítima ter sua vida vasculhada e difamada, num decreto de que ela foi culpada por se colocar ou permitir estar vulnerável, por não saber como se proteger, ou ainda, de que mereceu ser estuprada ou assassinada. Essa fala repetida por Jamie como um mantra dá o tom dos próximos acontecimentos.
O ambiente escolar é uma selva, agressões, bullyings, extorsões, humilhações dos mais variados tipos ocorrem, e mesmo aqueles que podem ser observados pelos professores e funcionários da escola, ficam por isso mesmo. Parece haver um cansaço e conformismo em aceitar que adolescentes são mesmo incontroláveis e que não há nada que se possa fazer. A escola parece o experimento desgovernado de Milgram [3], porém nessa escola não há perspectiva de que o experimento possa ser interrompido.
O psiquiatra brasileiro Jose Ângelo Gaiarsa, já no final de sua vida, reconhece que durante a adolescência a influência grupal pode se tornar mais importante que a educação recebida durante a vivência familiar. Outros autores desenvolvimentistas, tais como Winnicott e Erickson realçam que durante a adolescência o senso de pertencimento e aceitação por seus pares é fundamental para o desenvolvimento psíquico saudável. Mas quando o grupo é patológico, tal como o formado pelos alunos dessa escola, estaríamos entregando nossos filhos diariamente à exposição de ataques e violências das mais variadas formas. As relações de poder, abuso e submissão são uma constante entre os alunos, tanto quanto o desrespeito pelos professores.
O desconforto dos policiais Luke Baskombe (Ashley Walters) e Misha Frank (Faye Marsai), encarregados de investigar o caso, é gritante. Nem a autoridade policial é devidamente respeitada. Aos poucos, Luke Baskombe vai se familiarizando com as mensagens veladas e emojis típicos da Manosfera, e a rede de complôs de bullying e abusos começa a ser desvendada não mais como coisa de garotos, mas como comportamentos características de gangs mais ou menos organizadas.
Logo no início do primeiro episódio, o filho de Baskombe, Adam, envia mensagens de texto pedindo para não ir à escola, alegando estar doente. Baskombe interpreta a queixa de Adam como manipulação para faltar à escola, mas depois observamos que os meninos extorquem o dinheiro de Adam na hora do lanche, sob o olhar de um dos monitores, que tenta, sem muito empenho, advertir os agressores a pararem de incomodar Adam. Ao terminar o dia, Baskombe espera por Adam e o convida para ir comer com ele, Adam se recusa inicialmente, parecendo não acreditar que o pai teria tempo para ele, pois a rotina do pai se resume ao trabalho e aos treinos na academia, mas Baskombe insiste, pois se dá conta que não fazia ideia do que o filho vivenciava na escola até então.
Achamos que nossos filhos deveriam estar seguros quando estão em casa ou na escola, no entanto, a casa se tornou um lugar a céu aberto, onde qualquer malfeitor tem acesso a qualquer um de nós, assim que acessarmos a internet a partir de nossos computadores ou celulares. A regulamentação dos crimes digitais demorou para se adequar à nova realidade, e os crimes digitais, discursos de ódio, pornografia e pedofilia atravessaram fronteiras com extrema facilidade.
Jamie declara o pai como seu responsável legal durante as investigações, e acredita que o pai vai apoiá-lo e defendê-lo. Eddie (Stephen Graham) acredita que seu filho é inocente, e é advertido que talvez fosse melhor que Jamie nomeasse alguém do serviço social para acompanhá-lo. A certeza da inocência do filho cai por terra quando Eddie assiste ao vídeo do crime, e não consegue nem olhar para o próprio filho. E Jamie é quem precisa confortar o pai, arrasado com a cena de assassinato assistida. Eddie mal
consegue olhar para o próprio filho.
A angústia causada pelo tratamento dado a Jamie durante todo o processo de captura em sua casa e a frieza com que um adolescente com aparência inofensiva se justifica ao se saber que a investigação tinha provas contundentes sobre a autoria do crime, incluindo a perseguição à vítima, com evidências de que o crime havia sido planejado.
Durante a entrevista com a psicóloga forense, Briony Ariston (Erin Doherty) observamos como Jamie se mostra emocionalmente instável, oscilando entre um jovem colaborativo quando se sente aceito e seguro, e violento e ameaçador quando se sente acuado.
É difícil questionar os métodos e intenções da psicóloga Ariston, mas me causa estranheza que ela sirva chocolate quente com pequenos marshmallows e um sanduiche feito por ela durante uma entrevista de avaliação com um indivíduo acusado de assassinato. Ela não cumpre critérios de segurança básicos, ao oferecer uma bebida quente e ao deixar seus pertences na sala enquanto se ausenta por alguns minutos.
Todas as condutas durante o aprisionamento de Jamie contaram com equipe de apoio, e ela acaba se colocando numa situação de vulnerabilidade frente a um acusado de feminicídio. Podemos considerar que isso indicaria falta de experiencia em atender esse tipo de caso, tanto quanto uma estratégia de avaliação em que ela teria se colocado numa posição ambígua entre uma relação de poder profissional e de vulnerabilidade pessoal, exatamente para avaliar como Jamie se comportaria nessas condições.
Tanto Jamie quanto Briony tem comportamentos ambivalentes, ele oscilando entre uma tentativa de cooperação, na esperança de que ela caia em seu jogo de sedução, pois ela também joga o jogo da sedução quando lhe oferece os mimos em forma de chocolate quente e metade de um sanduiche que ela teria feito para ela mesma. Nesse momento, ela perde a autoridade profissional e já se torna uma presa viável para o comportamento instável de Jamie.
Quando ela realiza que ele se comportou como um verdadeiro predador em relação à Katie, encerra a entrevista informando que essa era a última, não cumprindo o combinado de um número determinado de entrevistas. Jamie reage desesperadamente, pois parecia acreditar que sua tentativa de sedução em relação à Briony estava funcionando, e que o flerte que ele julgava ser recíproco (devido à sedução com a comida oferecida) , Jamie era dependente do olhar dela tanto quanto do olhar do pai. Ele precisava de aprovação para seu comportamento, e isso o tornou uma presa fácil das conspirações da manosfera.
Segundo Jung, a adolescência se caracteriza pela integração das características do desenvolvimento dos dinamismos matriarcal e patriarcal, os arquétipos relacionais da anima e do animus levam o indivíduo a buscar pela própria identidade individual, a uma curiosidade em relação ao sexo e às relações amorosas, ao mesmo tempo em que há uma separação emocional em relação aos pais. Caso esse desenvolvimento psíquico seja caracterizado pela presença de complexos parentais negativos, os arquétipos da anima e do animus ficam contaminados pela sombra dos arquétipos matriarcal e patriarcal, levando a relacionamentos patológicos.
Nesse caso, devemos considerar que os arquétipos matriarcal e patriarcal não se referem apenas aos pais biológicos de Jamie, mas também a todo o contexto sociocultural que permeiam esses arquétipos primordiais, que estão em desequilíbrio tanto na família de Jamie, como no ambiente escolar que é revelado na série.
A adolescência é uma fase crítica do desenvolvimento, é onde ocorre o ponto de ruptura para conflitos não resolvidos da infância, é ainda a fase em que a maioria dos distúrbios mentais se manifestam, pois, a própria mudança corporal é um fator estressante, já que os riscos de não aceitação da imagem corporal podem trazer severas complicações. O desejo sexual se desenvolve concomitantemente com a adequação às normas sociais, quando estas não são claras, como demonstrado na série em questão, normas de comportamento e adequação podem ser substituídas por aquelas que estiverem disponíveis para grupos específicos, tais qual os da manosfera, incels, red pills ou coisa do gênero, cujas regras de comportamento não respeitam as questões éticas vigentes.
A necessidade de ser aceito por seus pares é característica dessa fase da adolescência, e torna-se mais importante ser aceito pelo seu grupo do pelos pelos membros da própria família.
Os adolescentes podem se sentir compelidos a comportamentos extremos em busca dessa aceitação por seu grupo de referência. Caso esse grupo de referência apresente os problemas apresentados na escola de Jamie, os parâmetros éticos de relacionamento interpessoal, em que o respeito e valorização das diferenças como um fator de enriquecimento das relações, se perde.
A série mostra a ausência do arquétipo patriarcal em sua função estruturante, seja na figura paterna, seja na figura de autoridade em sala de aula e administração de conflitos na escola.
A adolescência também se caracteriza pelo questionamento dos valores e normas sociais vigentes, em busca de uma relativização de valores extremos. Na ausência de valores e comportamentos consistentes, como observados na realidade do ambiente escolar, o modo salve-se quem puder é ativado, a lei do mais forte entra em vigor, e, com isso, as estratégias ilícitas de sobrevivência moral e social são ativadas, possibilitando que defesas psicopáticas se estabeleçam e sejam normatizadas pelo grupo.
As defesas psicopáticas se caracterizam por um conjunto de argumentos aparentemente racionais, cujas premissas equivocadas levam a conclusões também equivocadas. Tais defesas possuem um núcleo narcisista, cujo bem-estar pessoal e proteção dos próprios interesses, sem considerar o bem-estar e interesses dos próximos e da sociedade em geral. O vitimismo, e, consequentemente, a justificativa pseudo racional dos próprios comportamentos delinquentes como defesa legitima dos direitos individuais, ou da própria honra, comprometem a compreensão da realidade dos fatos.
Tudo isso pode ser observado durante a entrevista com a psicóloga. Os argumentos de Jamie estão repletos de defesas psicopáticas, que podem ser facilmente observadas na oscilação entre gentileza e simpatia e ataques de fúria quando se sente incompreendido ou injustiçado.
O arquétipo patriarcal aparece novamente de maneira equivocada quando o guarda que recebe Briony, ao invés de questionar seu comportamento de uma forma direta, faz insinuações, comparando seus métodos com o psicólogo forense qua havia avaliado anteriormente, acionando as defesas de Briony, ao invés de colocá-la no modo de questionamento de seus próprios métodos. Briony reage a ele como reage a Jamie em várias ocasiões, ela afirma seu lugar de autoridade, mas quem de fato exerce sua autoridade geralmente não precisa reafirmá-la o tempo todo, como ela faz.
Ele se expressa de maneira desrespeitosa, meio debochada, parecendo até que se divertia com o cuidado com que ela prepara o chocolate quente do jeito preferido de Jamie, ao que ela reage meio que escondendo os minis marshmallows da visão dele, talvez num ato inconsciente de que ela sabia, de alguma forma, que seu comportamento não era adequado para a situação. Jamie não era um paciente de psicoterapia numa clínica com problemas corriqueiros de comportamento, e sim um criminoso em avaliação com finalidades legais. de risco.
O guarda, como funcionário do sistema prisional sabe muito bem que certos comportamentos não protocolares podem colocar o staff em situação de risco, mas não tem o lugar de fala em posição de confrontar uma profissional habilitada, então ele se comporta como Jamie, tenta esconder seu ressentimento e agressividade e desrespeito em relação a ela, repetindo o comportamento misógino característico da manosfera.
A instabilidade emocional de Jamie é semelhante à de seu pai, Eddie. Eddie alterna entre um pai e marido amoroso e entre um homem incapaz de lidar com sua própria raiva e frustração, com dificuldades em regular as próprias emoções. O comportamento ambivalente de Eddie foi absorvido por Jamie, que se identifica com as qualidades do pai, negando as dificuldades de ambos em controlarem os próprios impulsos. De acordo com Jamie, a agressividade do pai é esporádica, portanto, não deve ser vista como algo importante, ele aprendeu que os comportamentos inadequados do pai devem ser tolerados, ou até mesmo ignorados, tanto quanto ele espera que seus próprios comportamentos agressivos sejam considerados como
normais e passíveis de aceitação pela sociedade.
Não podemos esquecer que nas primeiras cenas Jamie não alega inocência, e sim que não fez nada errado, pois, em sua concepção, o que fez não foi errado, Katie tinha praticado bullye com ele, e mereceu o que teve.
Ao ser confrontado com o fato de que Katie estava morta, Jamie de descontrola mais uma vez, como se a morte fosse um mero detalhe, o que importava de fato era como ele se sentia, o que bastaria para justificar toda e qualquer de suas ações, e ela estava lá para compreender isso tudo, aceitar e ajudá-lo a ser inocentado.
A mãe de Jamie, Manda Miller (Christine Tremarco) parece tentar exercer o papel de reguladora das emoções de Eddie, porém sem sucesso. O feminino acolhedor acaba por ficar refém de um comportamento masculino estereotipado, em que o que um homem faz para se proteger, ou para proteger a sua família se auto justifica.
Provavelmente o comportamento de Eddie não teria sido suficiente para que Jamie se tornasse o assassino frio no qual se tornou, mas influência dos grupos de ódio à mulher podem ter exacerbado essa influência de um complexo patriarcal transgeracional, que ultrapassa as fronteiras familiares, pois está presente no complexo patriarcal coletivo.
Erich Neumann, em seu livro O Medo do Feminino, alerta para as questões psicológicas primordiais relativas ao ódio em relação às mulheres, as raízes do feminismo e o contra-ataque gerado numa sociedade em que os papeis masculinos e femininos estão em transformação constante.
Certos direitos e privilégios que os homens detiveram sobre as mulheres ao longo da história estão em risco devido às leis de igualdade e de proteção aos direitos das mulheres em relação aos homens, mas as relações de poder ainda não foram substituídas por relações amorosas saudáveis e satisfatórias para ambos os sexos.
Uma família saudável e estruturada pode não ser suficiente para evitarmos o aumento do feminicídio, assim como não tem sido eficaz para evitar a morte massiva de jovens do sexo masculino, seja por crimes e assassinatos, seja por comportamentos de risco, considerados como normais dentro do espectro da masculinidade.
Uma discussão sobre os papéis de gênero são necessárias em nossa sociedade, desde que considere que os papéis atribuídos ao sexo masculino tem causado uma sobrecarga de demandas quanto ao desempenho profissional, financeiro e de sucesso.
Assim como as mulheres querem ser amadas, respeitadas e aceitas, ainda que não sigam padrões de beleza e de comportamentos femininos tradicionais, os homens também querem ser amados, respeitados e aceitos, ainda que não sigam os padrões de sucesso financeiro, profissional e de status que ao longo da história os classificaram como homens desejáveis pelas mulheres.
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[1] Segue aqui o link para o trailer oficial, os episódios completos estão disponíveis na Netflix. https://www.youtube.com/watch?v=mh48KXaCSxM
[2]Esse artigo da BBC traz várias informações importantes para a compreensão do pano de fundo que colabora para o assassinato de uma jovem. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl0lxnrlezo
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