A SUBSTÂNCIA – ANÁLISE SIMBÓLICA DO FILME
O mito da beleza e juventude eternas.
Atenção: contém spoilers.
A Substância, ou The Substance, em inglês, é um filme de terror corporal de 2024 escrito e dirigido por Coralie Fargeat e estrelado por Demi Moore, Margaret Qualley e Dennis Quaid. O filme acompanha uma celebridade em declínio que decide usar uma droga do mercado negro, uma substância replicadora de células que cria temporariamente uma versão mais jovem e melhor de si mesma, sem saber, causando efeitos colaterais horríveis.
Sinopse
No seu 50º aniversário, Elisabeth Sparkle, uma outrora celebrada, agora decadente estrela de cinema de Hollywood, é despedida sem cerimónias do programa de aeróbica que apresentava há anos, com o produtor Harvey a dizer que sua idade avançada é o motivo. Enquanto se conduzia para casa, Elisabeth se distrai com um outdoor de si mesma a ser retirado, resultando num grave acidente. Num check-up no hospital, um jovem enfermeiro oferece-lhe um pen USB com o título The Substance, que explica que há um soro que gera uma versão “mais jovem, mais bonita e mais perfeita” de si mesma. Após alguma hesitação, Elisabeth encomenda The Substance e injeta o ativador de uso único, o que resulta no surgimento de uma versão muito mais jovem dela própria, através de uma fenda nas costas dela.
The Substance estabelece uma relação simbiótica entre os dois corpos: Elisabeth tem de transferir a sua consciência entre os corpos a cada sete dias, com o corpo inativo a permanecer inconsciente. A outra versão também necessita de injeções diárias de “fluido estabilizador”, extraído do corpo original através de uma punção lombar, para prevenir a deterioração. A outra versão, que se nomeia a si própria Sue, é rapidamente contratada por Harvey para substituir Elisabeth. O novo programa de televisão de Sue lança-a para a fama, sendo eventualmente escolhida para apresentar o grande programa de Ano Novo da emissora. Como Sue, a atriz desfruta de uma vida confiante e hedonista, enquanto, vivendo como Elisabeth, se torna numa reclusa insegura.
Após uma noite de sexo, Sue extrai mais fluido estabilizador de Elisabeth para prolongar as atividades sexuais. Na manhã seguinte, Elisabeth acorda para descobrir que o seu dedo indicador envelheceu rapidamente. O fornecedor adverte que permanecer como Sue por mais de sete dias provoca um envelhecimento rápido e irreversível do corpo original, e que Elisabeth deve seguir o horário de trocas para evitar que isso volte a acontecer. Apesar de partilharem uma única consciência, ambas as personalidades começam a ver-se como indivíduos separados e rapidamente começam a odiar-se. “Elisabeth” torna-se ciumenta da beleza e sucesso de Sue, e ressente as frequentes negligências da segunda em relação ao horário de trocas, enquanto “Sue” fica horrorizada com a autocomiseração constante de Elisabeth e os seus episódios de compulsão alimentar. Após um episódio particularmente autodestrutivo como Elisabeth, uma Sue perturbada recusa-se a trocar de volta, decidindo permanecer permanentemente no corpo jovem.
Três meses depois, no dia da transmissão de Ano Novo, Sue descobre que o corpo de Elisabeth está completamente esgotado de fluido estabilizador. O fornecedor informa-a de que a única maneira de reabastecer o fluido é trocando novamente para o seu corpo original. Quando trocam, Elisabeth descobre-se horrivelmente transformada, agora quase sem cabelo e deformada com uma corcunda. Desesperada para parar o abuso de Sue do fluido estabilizador, que continua a degradar o seu corpo, Elisabeth adquire um soro projetado para eliminar Sue. No entanto, ainda desejando admiração, Elisabeth hesita antes de injetar a seringa de eliminação completa, procedendo a ressuscitar Sue, perturbando o equilíbrio simbiótico e deixando ambas totalmente conscientes. Ao perceber a intenção de Elisabeth ao ver a seringa quase vazia, Sue entra num estado de fúria e mata brutalmente Elisabeth, repetidamente esmagando-lhe a cara contra um espelho, pisando-a e chutando-a antes de partir para apresentar o especial de Ano Novo.
Sem Elisabeth, o corpo de Sue começa a deteriorar-se rapidamente, com três dentes, uma unha e uma orelha direita a caírem. Em pânico, Sue corre para o seu apartamento e tenta criar uma nova versão de si própria com o soro ativador que resta, algo expressamente proibido pelo fornecedor. Isto cria inadvertidamente o “Monstro Elisasue”, um híbrido grotesco das duas formas.
Elisasue veste-se e vai para a transmissão ao vivo com uma máscara improvisada de Elisabeth Sparkle. Quando a criatura sobe ao palco e começa a falar ao público, a máscara cai. A audiência horrorizada entra em caos violento; um homem decapita Elisasue antes que o seu corpo pulverize e encharque a plateia com sangue. O que resta de Elisasue escapa do estúdio e colapsa numa massa de vísceras. O rosto original de Elisabeth emerge, rasteja até à sua negligenciada estrela na Calçada da Fama de Hollywood, olha para as estrelas, sorri e derrete. Os restos ensanguentados são limpos por uma máquina no dia seguinte.
A Substância - Análise Simbólica do Filme
A comemoração dos 50 anos de Elisabeth é presenteada com uma demissão sumaria por Harvey, o diretor de seu programa de TV. A maneira displicente com que Harvey a demite é uma das primeiras cenas chocantes, e dá o tom do filme. O nome Harvey é uma clara alusão a Harvey Weinstein, diretor condenado produtor americano condenado por crimes sexuais.
No restaurante, Harvey devora um prato de camarões com molho, mastigando de boca aberta, sujando toda a mesa, ao mesmo tempo em que diz a Elisabeth como as mulheres devem se comportar para serem desejadas. Essa única cena já bastaria para iniciarmos uma análise sobre os padrões sociais determinados às mulheres, ou seja, devem fazer de tudo para serem bonitas, comportadas e desejáveis, enquanto ele pode se comportar como um troglodita à mesa, sem nenhum respeito àquela mulher que está à sua frente.
O abuso está nos detalhes.
Desorientada e desiludida, Elisabeth dirige seu carro quando vê um enorme outdoor com sua foto sendo substituído por outra propaganda, sofrendo um acidente de automóvel. Ao ser atendida no Hospital, recebe a notícia de que não sofreu nada grave, mas ela está visivelmente destruída. Nesse momento, surge um jovem médico que lhe propõe o uso de uma substância que a tornará uma versão melhor dela mesma.
Mesmo sem receber informações suficientes sobre o que era aquela substância, como agiria em seu corpo, quais seriam os efeitos desejáveis alcançados, e quais os efeitos colaterais, tanto esperados, quanto raros de acontecer, ela vai ao local indicado para retirar o material necessário para atingir seus objetivos de perpetuar sua beleza e juventude.
É nos momentos de maior fragilidade que estamos mais susceptíveis a cair no canto da sereia!
Elisabeth recebe um pen drive com informações superficiais, e sedutoras, sobre A Substância, e decide ir ao local indicado. O local é tão passível de suspeitas quanto a abordagem do misterioso médico, e, ainda assim, Elisabeth passa por cima de todas as evidências de que está seguindo os passos de um tratamento muito perigoso, além de clandestino.
Quantas mulheres, e atualmente, quantos homens tem se submetido a tratamentos estéticos com pessoas não qualificadas, ou utilizando medicamentos e intervenções sem nenhuma evidencia cientifica, sofrendo inúmeros efeitos colaterais, prejuízos à sua saúde, mutilações, ou mesmo morte, ao se deixarem seduzir pelas promessas de efeitos milagrosos? Elisabeth é apenas mais uma delas, agindo por impulso, desespero, e cedendo à sedução de que ela estava pronta para receber um tratamento experimental, mas muito especial!
Não podemos nos esquecer do diretor do programa de TV que ela comandou por vários anos, lhe diz, de maneira bastante natural, que ao completar 50 anos, uma mulher está naturalmente fora. Seu senso de importância e valor individuais são destruídos em questões de segundos, e ela cede à pressão do patriarcado tóxico achando que o problema era ela, e não o sistema.
Ao mesmo tempo, ela não se assumiu como uma artista capaz de fazer outras coisas, ficando fixada na imagem de beleza e juventude que não eram mais compatíveis com sua idade.
Ser jovem e bonita é a única qualidade que importa, mesmo que isso seja a essência do programa que Elisabeth comandava, um programa de exercícios físicos ao vivo, todo o valor dela como ser humano, como profissional dedicada há tantos anos, não são mencionados nessa macabra conversa. O que realmente conta para o programa, são os closes da câmera, as imagens extremamente focadas no corpo feminino, quase obscenas, que denunciam que aquele não era mais o corpo de uma jovem de 20 e poucos anos, portanto deveria ser substituído.
O filme trata o tempo todo da relação Eu – Coisa, não Eu – Outro, em que Harvey, o homem e seu séquito de investidores são o Sujeito, e as mulheres são a Coisa. A Coisa jovem é desejável e gera lucro para o programa, a Coisa velha deve ser descartada, como um objeto deve ser substituído por outro melhor.
Elisabeth tem uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood, além de um cartaz gigante com a foto dela anunciando seu programa, e um retrato, também enorme, dela na sua própria sala, onde sua beleza e sucesso podem ser constantemente lembrados e celebrados, mas a estrela na Calçada da Fama também já está velha e desgastada, as pessoas passam por ali sem se atentar ao nome que está ali escrito, lixo cai sobre ela, numa metáfora cruel sobre os efeitos passageiros do sucesso e da fama.
A Estrela na Calçada da Fama também é uma analogia ao uso e abuso dos artistas em evidência, afinal, essa estrela na calçada assemelha-se à lapide de alguns cemitérios. Aqui jaz fulano de tal, artista consagrado, cuja importância irá durar tanto quanto o frescor da tinta e a qualidade do cimento ali usados.
Hollywood, ao ser escolhida como cenário desse filme representa o self cultural atual. As mídias sociais nada mais tem feito além de reproduzir na realidade de cidadãos comuns, as exigências de perfeição imagética e de desempenho que a indústria do cinema tem desenvolvido ao longo dos anos. Ao tentar atrair um número cada vez maior de público para as produções televisivas e cinematográficas, o mito da beleza e da juventude tem sido explorado, juntamente com suas atrizes e atores. Idealiza-se um produto, ou reconhece-se o potencial de alguém enquanto produto e se investe nesse padrão até que esse se esgote, até o surgimento de algo novo.
Essa mensagem do Show Business, de que os artistas existem para entreter o público, e, consequentemente, serem consumidos/as expandiu-se às pessoas comuns e sua infinitas e desesperadas buscas por likes e seguidores.
A beleza ideal já não reside apenas na imitação dos grandes astros e símbolos sexuais da atualidade, sempre inatingíveis, hoje a meta é ser tão perfeito quanto a própria imagem melhorada/manipulada pelas câmeras do celular.
Como diz Harvey, o publico quer sempre algo novo!
A Substância se trata de um misterioso processo de clonagem caseira, que faz com que uma mulher jovem e atraente, Sue (Margaret Qualley), saia de dentro de sua coluna vertebral, como um filhote saindo de suas costas. A imagem do corpo de Elisabeth, largado no chão frio, com a coluna costurada de maneira artesanal, é chocante. Essa cena retrata o corpo como algo descartável, um invólucro vazio, pois a alma agora habita o corpo de Sue.
A promessa era de que ela seria uma melhor versão de si mesma, mais jovem e mais bonita, mas ao invés dela se tornar mais jovem e bonita, um clone seu surge, como um alter ego, capaz de viver e realizar tudo que ela sempre quis, inclusive recuperar seu papel no programa de TV.
Elas agem como aquelas pessoas que tem uma segunda chance na vida, mas fazem tudo exatamente igual a antes, cometendo os mesmos erros, Sue se submete aos valores patriarcais, jogando o jogo da exposição exagerada do corpo, agora com closes muito mais incisivos e sensuais, gerando frisson no público. Ela tem a beleza da juventude, e um comportamento ao mesmo tempo que simula uma ingenuidade, e investe pesado na sedução. Enfim, ela se rende novamente aos mecanismos de uso e abuso do corpo feminino da sociedade patriarcal toxica.
Elas são e não são a mesma pessoa, pois um clone não é exatamente a mesma pessoa que o originou, e sim um outro individuo com vontade própria. Não são a mesma pessoa inclusive porque Sue não tem a mesma amargura que Elisabeth experimenta ao ser rejeitada por causa de sua idade.
Sue aproveita todo o sucesso, a fama, e a bajulação que recebe, assim como imagino que Elisabeth tenha feito em sua juventude. O problema surge quando Sue passa a viver sua vida como se Elisabeth não existisse, desrespeitando o período de 7 dias que cabia a cada uma.
Mas como lidar de maneira satisfatória com os 7 dias de vida que cada uma teria, enquanto o corpo da outra fica largado, como a pele descartada de uma cobra, ou o casulo de uma borboleta.
Enquanto o corpo de Elisabeth fica largado no chão, Sue assume o protagonismo do show, trabalha, faz sucesso, e é “amada” por todos, da mesma forma que Elisabeth havia acreditado que era. O golpe terrível culmina quando Elisabeth assume sua semana e vê que o enorme outdoor com sua foto, em frente à sua janela, é substituído pelo de Sue. Os vestígios do sucesso de Elisabeth desaparecem rapidamente.
Por outro lado, Sue vive intensamente seu período de fama e de glória, Elisabeth não tem com o que ocupar seu tempo, pois toda a sua vida girava ao redor do trabalho e da ilusão de que era amada por todos. Seus fãs já não eram mais seus, e sim de Sue!
A cilada em que caíra ao usar A Substância começa a lhe incomodar, mas sem ainda perceber a gravidade do que estava acontecendo. Ela achava que a melhor versão dela mesma seria ela própria, ou realmente uma versão dela mesma, com a qual ela pudesse seguir com a vida que levava anteriormente, mas Sue era como um clone, um outro ser gerado nela, que não era um filho ou filha, mas um duplo, com vida, vontade e desejos próprios, que passa a desprezá-la, escondê-la, e a desrespeitar as regras da utilização da Substância – a de que cada uma teria uma semana de vida.
A cada 7 dias, quando recuperava a vida, Elisabeth era surpreendida com o sucesso cada vez maior de Sue, o programa exibido na TV, o outdoor dela sendo substituído pelo de Sue, até o anuncio de que Sue apresentaria o especial de Ano Novo. Quanto mais Sue tinha sucesso, mais ela deprimia e se enraivecia.
Elisabeth resolve abrir o presente de aniversario que Harvey lhe dera pela ocasião de seu aniversário/demissão, um livro de receitas francesas, recomendado pela esposa de Harvey, e se põe a cozinhar e a comer, compulsivamente, transformando o apartamento em que elas coabitam num caos de resquícios de preparo, louças sujas, restos de comida e lixo acumulado, fazendo com que Sue fique ainda mais furiosa com ela.
Harvey, ao encontrar Sue nos corredores da emissora diz: - Sorria, mulheres bonitas devem sempre sorrir! E Sue sorria, e jogava o jogo.
As mulheres nunca são suficientemente jovens, bonitas, ou o que quer se exija de nós.
Harvey, e seu coletivo de homens indiferenciados estão aqui para nos lembrar o que se espera de nós, mulheres.
Devemos observar que Harvey anda sempre acompanhado por vários homens, todos babando por Sue, embevecidos por sua beleza. Esses homens representam a atitude masculina coletiva, andam em bando, se comportam em coro, sempre concordando com o líder do bando.
Eles representam a atitude coletiva no sentido da indiferenciação, uma atitude que não reflete sobre as próprias ações, nem tem empatia pelos diferentes, pelo Outro. Erich Neumann e Simone de Beauvoir concordam que, para o homem, a mulher é O Outro, aquele que o homem não reconhece como igual, e a quem deve evitar, a todo custo se identificar, com o risco de ser devorado pelo Arquétipo da Grande Mãe em seu aspecto negativo, devorador e castrador.
As bailarinas todas que participam do programa de Elisabeth, e posteriormente de Sue, representam, por sua vez, a atitude feminina coletiva da mulher/objeto/sexualizada, que se adapta à atitude masculina coletiva em busca de aceitação e de um lugar no mundo.
Nesse sentido, o filme usa e abusa de clichês patriarcais e misóginos, alguns bastante aceitos pela sociedade, como a premissa cultural de que mulheres devem ser sempre dóceis e sorridentes.
Enquanto Sue assume essa persona aceita pela consciência patriarcal coletiva dominante, Elisabeth passa a entrar em contato com toda a raiva pela perda de privilégios que estar no topo desse jogo lhe proporcionou, mas sem se dar conta de que uma reflexão era necessária.
O elixir da vida de Sue era retirado da coluna de Elisabeth, numa analogia simbólica à sua estrutura, sua sustentação. A medula de Elisabeth permitia que Sue assumisse por uma semana, mas uma semana passou a não bastar, e cada vez mais o corpo de Elisabeth era sugado, desgastado, para que Sue pudesse viver. Bastou um dia a mais na semana de Sue para que Elisabeth tivesse um dedo cruelmente envelhecido, e isso a faz começar a perceber que o trato não estava sendo cumprido, e que ela sofreria com um envelhecimento acelerado, ao invés da juventude melhorada prometida.
O conflito entre a fantasia da eterna juventude e a desvalorização da mulher que envelhece são mostrados de maneira extrema e dramática durante o enredo do filme. O telefone para o qual elas ligavam para falar sobre os problemas que enfrentavam ao usar a Substância eram todos respondidos da mesma maneira: - Não se esqueçam, vocês são uma só! E foi a primeira coisa que esqueceram!
Eram uma só pessoa, mas cada faceta odiava a outra. Para que Sue aproveitasse melhor a juventude, abusava do fluido de Elisabeth, que ao invés de se tornar uma versão melhor de si mesma, passa a envelhecer cada vez mais rápida e grotescamente. Quanto mais envelhecia, mais era desprezada por Sue. Quanto mais Sue abusava do seu tempo de permanência na vida, mais Elisabeth se tornava agressiva, deprimida, solitária. O inimigo morava dentro de cada uma.
A dificuldade de auto aceitação que Elisabeth enfrenta é o resultado de uma adaptação excessiva a uma persona social, em que a mulher não pode envelhecer, pois perde valor de mercado. Perde valor no mercado profissional, sexual e afetivo. Porém, na verdade, esse valor é o mesmo de um objeto obsoleto que é substituído.
Objeto ela era quando jovem, objeto continua a ser quando envelhece. Sue usa da energia do corpo de Elisabeth, assim como a mídia usou sua imagem, caindo na mesma armadilha que Elisabeth havia caído, de que era amada e tinha valor.
Ao nos lembrarmos que Sue e Elisabeth são a mesma e única pessoa, os comportamentos egoístas, as decisões impulsivas, o comportamento agressivo e frívolo estava na sombra das duas personagens. Sue só poderia ser sedutora, fútil, egoísta, agressiva, porque esta era a natureza reprimida de Elisabeth.
Todo o ódio por ser descartada ao envelhecer vira o desespero de Sue de não desperdiçar um momento sequer do pseudo poder que a juventude e a beleza lhe dão.
Ao se identificarem com o arquétipo da beleza, perderam a dimensão maior do arquétipo do feminino, e da condição humana de ser mulher num mundo patriarcal, em que os relacionamentos se dão através da manutenção de uma persona inatingível.
Elas buscam a beleza de Afrodite, mas Afrodite é uma deusa que, como a madrasta da Branca de Neve, não permite que alguém seja considerada mais bela do que ela. Ao desejar se identificar com Afrodite, acabam por se identificar com Perséfone, a rainha eternamente jovem porque está no reino de Hades, o reino dos mortos.
Elisabeth busca a beleza e juventude eternas, simbolizada pela deusa Hebe, que servia aos deuses o elixir da fonte da juventude, ou a ambrosia, alimento dos deuses do Olimpo. A fonte da juventude é o mito que permeia esse filme, pois a busca da fonte da juventude, através do uso da substância, não deixa de ser uma hybris, afinal, apenas os deuses poderiam beber dessa fonte.
Como nos mitos, a transgressão cometida pelos mortais que buscam se igualar aos deuses, é sempre severamente punida.
No mito, Hebe se casa com Hercules após o término de seus atos heroicos, formando um casal em que os atributos criativos do feminino e do masculino se encontram, no entanto, nem Elisabeth, nem Sue, seu alter ego, parecem se interessar em relacionamentos afetivos transformadores, pois a busca da eterna beleza e juventude são um fim por si só, numa regressão narcísica de auto identificação erótica consigo mesma, em que o Outro também é objetificado.
Elisabeth não consegue ir ao encontro do antigo colega de colégio e seu ainda admirador, pois não consegue ficar satisfeita com sua própria imagem. Seu foco não é se relacionar com alguém, e sim ser admirada. E esse homem, que a reconhece, mas que nunca foi visível para ela, não seria capaz de satisfazer sua necessidade narcisista de reconhecimento, pois a opinião dele não significa nada comparada à aceitação da grande mídia, que primeiro a elevou ao auge da Estrela da Calçada da Fama, para depois jogá-la ao ostracismo.
O mesmo ocorre com Sue, que se relaciona sexualmente, mas não afetivamente com ninguém. Não há nenhuma cena no filme em que nos deparamos com relacionamentos reais. Cada um exerce sua função e é dispensado após isso, seja no show, no sexo, na arrumação da casa.
Elisabeth, ao se comparar com a imagem de Sue, seu alter ego idealizado em conformidade com as demandas dos valores patriarcais relativos ao feminino estereotipado, torna-se incapaz de enxergar a própria beleza, e seu valor como individuo, pois não reconhece nenhum valor em si própria que ultrapasse as barreiras da aparência.
Ao contrário de Narciso, que morreu jovem, Elisabeth não consegue aceitar e admirar sua imagem real no espelho, ela agora está identificada com a Rainha Madrasta, Branca de Neve, e precisa que Branca de Neve morra para se sentir a mais bela novamente.
Uma grande ilusão, pois elas são uma única pessoa, uma não existe sem a outra.
A única maneira de nós, mortais, permanecermos eternamente jovens, é morrendo jovem. Dessa forma, nossa imagem será eternizada no auge da beleza e juventude.
Só os vivos têm o privilégio de envelhecer.
Numa tentativa desesperada de reverter os estragos do mau uso da Substância, Sue ignora que o uso é único, e tenta mais uma vez se tornar o melhor dela mesma, acreditando que ao reverter o processo, ela se tornaria o melhor das duas, mas o que acontece é que não há o melhor das duas, a criação das duas é um monstro, cheio de seios e rostos desconexos.
A sombra do patriarcado mostra seus efeitos nefastos, criando o Monstro Elisasue.
Quantos indivíduos, principalmente mulheres, ficam irreconhecíveis após procedimentos estéticos que roubam sua identidade, a ponto de nem serem mais reconhecidas. Qual o limite entre a vaidade e a aceitação de que a vida se constitui de fases, e uma delas é a velhice.
Os procedimentos estéticos podem até melhorar a aparência de alguém, mas não é possível fazer alguém voltar a ser jovem. O processo de envelhecimento não para, e seus efeitos transparecem em detalhes impossíveis de serem totalmente eliminados.
Um dos recados do filme é: - Não basta se manter com aspecto jovial e bem cuidado, a beleza da juventude é inevitável. Não bastou Elisabeth se manter em forma e atraente aos 50 anos, como disse Harvey, aos 50 anos ela deve ceder seu lugar a alguém mais jovem e, logo, mais atraente.
A maneira como Elisabeth é surpreendida ao ser substituída por uma mulher mais jovem me dá a impressão de que ela não se deu conta de que o tempo havia passado para ela, ela ficou fixada nas vantagens que a juventude lhe proporcionou, e se esqueceu de planejar uma vida com significado e laços afetivos duradouros. Ao ser descartada por ser velha, ela perde sua identidade totalmente fixada na persona da mulher jovem e bonita. Ao invés de aproveitar esse momento para reavaliar a própria vida e suas escolhas, e parte em busca de uma solução mágica que a traria de volta para sua antiga vida.
Não é possível voltar no tempo. A fixação nostálgica ao passado já é algo difícil de se elaborar, mas fantasiar que se pode voltar a ser quem se foi no passado, beira ao delírio.
O aumento da longevidade da população faz com que nos deparemos com questões relativas ao envelhecimento. A supervalorização da juventude, ou mesmo da infância e adolescência parece que nos fez esquecer que essas fases são passageiras, e que a fase adulta e de envelhecimento duram muito mais tempo do que as anteriores.
Numa sociedade em que os valores estéticos e de desempenho se superpõem, qual o papel social e afetivo do envelhecimento?
Arquetipicamente falando, seria o estágio da sabedoria, mas a humanidade parece ter se distanciado absurdamente do ideal da sabedoria, quanto mais da ética.
Vivemos relacionamentos líquidos, fluidos, onde as relações afetivas são descartáveis e facilmente substituíveis por parceiros e parceiras mais jovens, mais “Instagramáveis”.
Elisabeth teve seu fluido usado até quase o esgotamento, ou seja, Sue tentou viver a juventude transgressora através da Substância até o ultimo nível.
Ao não aceitar o envelhecimento como condição natural da vida, entrou em guerra contra sua própria natureza, e sua própria natureza, personificada por Sue, era egoísta, fútil, violenta. Ela incorporou os ideais patriarcais de objetificação do corpo da mulher ao último grau, tornando-se uma caricatura monstruosa de si mesma, não apenas no Monstro Elisasue, mas na monstruosidade perversa de uma em relação à outra, mas, lembrem-se, elas são a mesma pessoa.
Ao final, a festa de Ano Novo vira uma festa de horrores, e o Monstro Elisasue é decapitado por um homem da plateia. Decapitada ela já era antes disso, pois sua capacidade cognitiva e emocional já estava desconectada de seu corpo, que só existia para cumprir os rituais de sedução patriarcais, embalados numa persona dócil, bem-comportada, sempre bela, sempre atraente, agradável aos olhos, com um sorriso nos lábios, como aquele da foto com a qual ela cobre seu rosto monstruoso para apresentar o especial de Ano Novo.
Nesse momento, o Monstro Elisasue, mostra uma personalidade dissociada da realidade. Assim como Elisabeth não se conecta com o corpo de uma mulher de 50 anos, o Monstro Elisasue não tem consciência da monstruosidade que se tornou.
O filme começa da mesma maneira que termina. Primeiro temos a visão da Estrela de Elisabeth Sparkle sendo instalada na Calçada da Fama de Hollywood, com todo o glamour que isso representa. Mas com o tempo, aquela estrela que a homenageia, racha e é danifica. É pisoteada e ignorada. Um homem passa por ela, deixa cair o hambúrguer e a estrela fica suja de ketchup. Ao final, são os restos do Monstro Elisasue que volta à sua estrela, como na tentativa de recuperar a importância que teve no passado, mas é varrida por uma máquina da mesma forma que os restos de hambúrguer que antes foram limpos.
Ela, como a memória de sua existência, é varrida como lixo. Esse é o preço que se paga ao nos identificarmos como Objeto, não como indivíduos.
Mas a vida, como no filme, é assim. Indivíduos pagam o preço pela adaptação excessiva e sem questionamentos à uma sociedade doentia.
O público ataca Elisasue pela sua monstruosidade, assim como ataca e critica a aparência das mulheres, mas essa monstruosidade é o retrato do psiquismo de uma sociedade que repete padrões coletivos e superficiais, evitando entrar em contato consciente com os questionamentos necessários à nossa época.
A negação da sombra social afeta o desenvolvimento psíquico individual, e ainda corremos o risco de buscar novos bodes expiatórios para carregar as mazelas monstruosas dessa sombra coletiva.
Elisabeth é um dos inúmeros resultados de tragédias pessoais gerados pela patologia cultural. Somos todos oriundos de uma sociedade que nos afeta, e, ao não percebermos isso, podemos estar tratando indivíduos doentes, sem compreendermos o contexto maior em que estamos todos inseridos.
E você, até onde estaria disposta/o a ir em busca da beleza, aceitação e reconhecimento?
Referências
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WOODMAN, Marion. O vício da perfeição: compreendendo a relaçao entre distúrbios alimentares e desenvolvimento psíquico. [S.l.]: Summus Editorial .
[1] “É literalmente impossível ser uma mulher. Você é tão linda e tão inteligente, e me mata que você não se ache boa o suficiente. Tipo, temos que sempre ser extraordinárias, mas de alguma forma estamos sempre fazendo isto errado.
Você tem que ser magra, mas não muito magra. E você nunca pode dizer que quer ser magra. Você tem que dizer que quer ser saudável, mas também tem que ser magra. Você tem que ter dinheiro, mas não pode pedir dinheiro porque isso é grosseria. Você tem que ser um chefe, mas não pode ser má. Você tem que liderar, mas não pode esmagar as ideias dos outros. Você deveria amar ser mãe, mas não fale sobre seus filhos o tempo todo. Você tem que ser uma mulher de carreira, mas também estar sempre cuidando de outras pessoas. Você tem que responder pelo mau comportamento dos homens, que é uma loucura, mas se apontar isso, é acusada de reclamar. Você deve permanecer bonita para os homens, mas não tão bonita a ponto de seduzi-los demais ou de ameaçar outras mulheres porque deveria fazer parte da irmandade.
Sempre se destaque e seja sempre grata. Mas nunca se esqueça de que o sistema é manipulado. Portanto, encontre uma maneira de reconhecer isso, mas também seja sempre grata. Você nunca deve envelhecer, nunca deve ser rude, nunca se exibir, nunca ser egoísta, nunca cair, nunca falhar, nunca mostrar medo, nunca sair da linha. É tão difícil! É muito contraditório e ninguém te dá uma medalha ou agradece! E acontece que, de fato, você não apenas está fazendo tudo errado, mas também tudo é sua culpa.
Estou tão cansada de ver a mim mesma e a todas as outras mulheres se amarrando para que as pessoas gostem de nós. E se tudo isso também se torna uma verdade para uma boneca que representa apenas mulheres, então eu nem sei mais”.